A arte do violão

Programas idealizados e apresentados por Fábio Zanon
Um dos conceitos mais artificiais que a crítica musical jamais cunhou é o de escola instrumental. Interpretação musical é uma expressão de individualidade exacerbada, e um grande intérprete é sempre aquele que cria seu próprio universo sonoro. Porém, num dado momento e num certo lugar, é possível perceber uma comunhão de interesses e prioridades musicais: a bravura da escola russa de piano, a precisão dos metais americanos, as qualidades arquitetônicas da regência alemã. No violão, aquilo que está mais próximo de constituir uma escola não acontece na Espanha, mas bem perto de nós, na Argentina, Uruguai e Sul do Brasil, uma espécie de escola rio-platense do violão.

Programa XX - A Escola Rio-Platense dos Anos 70

Um dos conceitos mais artificiais que a crítica musical jamais cunhou é o de escola instrumental. Interpretação musical é uma expressão de individualidade exacerbada, e um grande intérprete é sempre aquele que cria seu próprio universo sonoro. Porém, num dado momento e num certo lugar, é possível perceber uma comunhão de interesses e prioridades musicais: a bravura da escola russa de piano, a precisão dos metais americanos, as qualidades arquitetônicas da regência alemã. No violão, aquilo que está mais próximo de constituir uma escola não acontece na Espanha, mas bem perto de nós, na Argentina, Uruguai e Sul do Brasil, uma espécie de escola rio-platense do violão.

BG - Tamboriles?
É uma geração de violonistas que tomaram o mundo musical de assalto nos anos 70, e que tem em comum os professores argentinos Jorge Martinez Zarate e Abel Carlevaro. Eles freqüentaram os célebres Seminários de Violão de Porto Alegre e desenvolveram seu rigor musical com o compositor Guido Santorsola. Eles compartilham uma técnica límpida e natural, uma abordagem racional e analítica do texto musical e uma expressão sóbria. São, de uma certa forma, os europeus da América Latina. Em 1975, o prestigioso concurso internacional da Radio France em Paris teve dois argentinos e dois uruguaios na final; todos os quatro desenvolveram, posteriormente, uma carreira expressiva, mas o vencedor foi o argentino Roberto Aussel.

BG Aussel
Aussel nasceu em 1954, deu seu primeiro concerto aos 13 anos e já havia vencido os concursos internacionais de Caracas e de Porto Alegre antes do sucesso em Paris. Hoje ele é um nome freqüente no panorama internacional do violão e é professor na Escola de Música de Colônia, na Alemanha. Se, por um lado, seu temperamento conciliador tende a uniformizar indevidamente o repertório romântico e moderno, por outro ele é admirado por sua sonoridade líquida, que produz elegantes interpretações de obras barrocas, como esta suíte de Weiss:


CD Roberto Aussel
Weiss: Suite no.23, L´Infidele: Entrée, Musette 6´30


[desanúncio] Weiss foi um contemporâneo exato de Bach e o alaudista mais admirado do séc.XVIII. Esta suíte L´Infidele provavelmente deve seu título ao caráter beligerante à aparição de dissonâncias que eram consideradas "orientais" numa época marcada pelas invasões turcas. A tonalidade de lá menor era considerada apropriada para a expressão de um caráter majestoso, honesto e bem dosado, o que é uma descrição apropriada para esta interpretação de Roberto Aussel.

BG
No mesmo concurso de Paris em 75, o segundo prêmio foi dividido. Um dos agraciados foi Miguel Angel Girollet, um verdadeiro aristocrata do violão, que fixou-se em Madri antes de falecer prematuramente em 1996, sem deixar uma discografia. O outro tornou-se o violonista mais conhecido deste grupo, Eduardo Fernández.

BG
Fernandez nasceu em 1952 e, além de ter estudado violão com Carlevaro, tem também uma sólida formação como compositor e musicólogo. Como todos os violonistas desta geração, ele se serviu dos concursos internacionais como plataforma para sua carreira; além do prêmio em Paris, ele foi vencedor dos concursos internacionais de Porto Alegre e de Palma de Mallorca. Suas estréias em Nova York e Londres em 1977 arrancaram superlativos da crítica e levaram a gravadora Decca a convidá-lo para uma série de CDs. Não é para menos, as primeiras gravações de Fernandez já mostram um grau de maturidade incomum.

Villa-Lobos
Ginastera: sonata, 2o mov Scherzo 2.00

[desanúncio] Esta Sonata de Ginastera é um dos pilares do repertório do violão, mas Fernandez foi o primeiro a grava-la e até hoje seu registro é uma referência. Com um virtuosismo coruscante ele consegue esculpir a atmosfera alucinatória que é um dos ingredientes essenciais da arte de Ginastera.

BG
O que mais admiro em Eduardo Fernandez é sua cultura musical absolutamente impecável. Seguindo a tradição de Segovia e Bream, ele não se rende à pressão comercial e só inclui em seu repertório obras de primeira ordem; freqüentemente ele ressuscita obras-primas esquecidas e realiza primeiras gravações de obras contemporâneas, além de visitar setores inteiros do repertório com acuidade estilística e sensibilidade para as necessidades estruturais.

Fita: Legnani
Legnani: Caprichos em fa# menor e mi maior c.4


[desanúncio] Legnani é um contemporâneo exato de Paganini e esteve no centro da vida musical do séc. XIX; freqüentemente ele dividiu o palco com os maiores artistas de sua época, como Liszt, Clara Schumann e Moscheles. Seus 36 Caprichos são um compêndio do violão pré-romântico e estavam praticamente esquecidos até a gravação de Fernández.

BG
Fernandez é conhecido por uma admirável acuidade mental. Além de ser capaz de analisar em profundidade qualquer obra de seu repertório, ele é capaz de aprender obras inteiras de cor sem ter de tocá-las ao violão; ele é versado em literatura e tem pleno domínio de várias línguas, inclusive o japonês. Pode parecer que isso não tem nada a ver com o desempenho de um concertista, mas uma obra como a Sequenza de Berio exige de um intérprete não só uma técnica poderosa, mas também cultura no mesmo patamar. Nela, Berio constrói uma estrutura em que dois blocos de material contrastante são colocados em oposição logo no início; gradualmente ele vai criando pontes entre eles, ampliando as possibilidades técnicas do violão com técnicas emprestadas do flamenco e da guitarra elétrica.

CD Avant Garde
Berio: Sequenza XI 16.39


[desanúncio] Uma obra-prima que, devido à sua dificuldade, ainda não é tocada com freqüência. Fernández tem uma técnica de notável fluência; Se há uma pequena coisa a criticar é a sua qualidade de som, que às vezes resulta um pouco arenosa e sem lustro; ao vivo isso não é tão evidente, mas a engenharia de som de suas gravações pela Decca não lhe faz nenhum favor.

BG
Pode parecer que ele só tem interesse por raridades e obras muy sérias, mas ele também é capaz de produzir versões cintilantes de obras mais leves, como esta de Antonio Lauro, onde o compositor reproduz a sonoridade da harpa venezuelana. Os soldados de Bolívar provavelmente se divertiam tocando joropos como este. Não admira que tenham vencido a guerra.

CD La Danza
Lauro: Seis por Derecho 4´?


[desanúncio] O sucateamento das grandes companhias discográficas levou Fernandez a abandonar a Decca por uma gravadora menor, onde ele tem mais liberdade de escolha sem pressões comerciais. Sua total imersão em qualquer obra que esteja tocando produziu o que considero a melhor gravação das obras de Bach ao violão. Elas têm uma qualidade fundamental: coerência intelectual. A estrutura motívica é sempre articulada de maneira uniforme, a ornamentação é historicamente perfeita, sem se sobrepor à concepção original de Bach, e seu controle da dinâmica sempre respeita a macro-estrutura harmônica destas obras.

CD Bach
Bach: Suíte BWV 997, Prelude, Gigue, Double 2.40

1.24
1.22

[desanúncio] Mais recentemente, ele tem gravado o repertório do séc XIX com um instrumento de época, uma cópia de um violão de 1830 que pertenceu ao compositor desta peça, Dionísio Aguado.

Eduardo Fernandez, Romantic Guitar, Fx
Aguado: Introdução e Rondo op.2 no.3 em ré maior 9´30´´


[desanúncio] O vencedor do Concurso de Paris em 1977 foi o uruguaio Álvaro Pierri.

BG
Ele também já havia vencido o concurso de Porto Alegre e morou no Brasil por vários anos, como professor na Universidade de Santa Maria, no RS. Hoje ele divide seu tempo entre Montreal e Viena, e é o catedrático de violão nas escolas destas duas cidades, além de ser um concertista bastante requisitado.
Pierri tem talvez a técnica mais sofisticada de todos os violonistas dessa geração, mas ela serve a uma personalidade musical bastante excêntrica. Ele tende a desenvolver à máxima potência algum aspecto estrutural das obras que escolhe, e o faz de maneira absolutamente obsessiva, muitas vezes desconsiderando até mesmo as indicações do próprio compositor e qualquer convenção interpretativa consagrada pela tradição.

BG
Neste prelúdio de Villa-Lobos, por exemplo, ele toca o acompanhamento sempre com um ligeiro harpejo, espalhando as notas do primeiro acorde, exceto nos casos em que há um movimento cromático. O andamento é consideravelmente mais lento que aquele a que estamos habituados, especialmente na seção central, mas ele "desenha" o movimento melódico da peça com um controle de dinâmica digno de um ourives.

Fita Pierri
Brouwer: Villa Prelúdio no1 c.5´


[desanúncio] O caráter desta interpretação é totalmente diferente daquilo ao que o ouvinte está acostumado, mas ao mesmo tempo é de total coerência. Talvez não seja a gravação mais indicada para quem nunca ouviu a peça, mas para quem já a conhece é sempre instigante. É apropriado que um intérprete tão singular viva no Canadá, a terra de Glenn Gould, o pianista que mais defendeu o direito de intervenção intelectual do intérprete. Outro violonista argentino que tem suscitado bastante interesse nos últimos anos é Eduardo Isaac.

BG
Ele nasceu em 1956 e se escolou nos cursos ministrados por Carlevaro na Argentina e Porto Alegre. Ele é um múltiplo vencedor de concursos internacionais, entre eles os de Porto Alegre, Madri e palma de Mallorca, e tem se especializado no repertório do século XX. Além disso ele é catedrático de violão no conservatório de Entre Rios, e alguns violonistas brasileiros têm se aperfeiçoado com ele nesta cidade fronteiriça.
O que mais admiro em Isaac é o bom gosto na escolha de obras contemporâneas, que ele toca com verdadeira devoção, como esta sonata de Bogdanovich:

Cd 20th Century Guitar I
Bogdanovich: sonata I 1o mov 3.03


[desanúncio] Bogdanovich é um compositor sérvio que vive em San Francisco. Ele começou sua carreira como um compositor folclorista, seguindo o exemplo de Bartok, e mais recentemente tem utilizado elementos de improvisação numa obra imensa e de alto interesse. Esta sonata é uma de suas primeiras obras.

BG
A palavra-chave para definir Eduardo Isaac é a estabilidade. Suas interpretações sempre primam por um perfeito balanço entre inspiração e erudição, entre coração e cabeça. Sua sonoridade é algo opaca, mas amplamente compensada pela sua claridade de fraseado, como neste prelúdio de seu mestre Abel Carlevaro:

CD Carlevaro
Carlevaro: Evocación 5.33


[desanúncio] Carlevaro aliás é um compositor interessantíssimo, e esta gravação de um de seus melhores alunos é um tributo e uma referência.

BG
Quando eu tinha 15 anos de idade e estava começando a tocar profissionalmente, os colegas sempre perguntavam "quando é que você vai sair?", como se o único caminho para um concertista de violão sul-americano fosse residir na Europa ou nos EUA. A verdade é que todos os intérpretes deste Programa tiveram 100 % de sua formação em casa, construíram suas carreiras vencendo concursos internacionais, são idolatrados no circuito internacional de violão e, no caso de Fernández e Isaac, continuam morando em seus próprios países. Como o futebol, o violão sul-americano é referência mundial e artigo de exportação.

No próximo Programa, a arte de Manuel Barrueco e David Starobin.
Agradecimentos Henrique Pinto, Eduardo Fernández e Gilson Antunes.

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